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Lives, Content ID e o controle da música

Com a pandemia da Covid-19 e o isolamento recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), as lives tornaram-se um meio de comunicação, de obter informações e de entretenimento para o público.
 
Embora esse formato já tenha atingido seu pico [1], mesmo com potência reduzida, as lives mostram-se cada vez mais capacitadas [2] como uma alternativa para o setor de eventos e shows pós-pandemia, em que a previsão para retomada segura data, pelo menos, no fim 2020 [3].
 
Mesmo que as lives, em um primeiro momento, pareçam meras apresentações (shows), existem diversas controvérsias relacionadas ao seu conteúdo. Uma, em especial, evidencia questão relevante e sempre presente no cenário do entretenimento: os direitos autorais.
 
A música na forma como a consumimos apresenta relações complexas. No que tange às lives, o imbróglio ocorre, precisamente, pelo fato do(s) autor(es) da obra (composição musical), do intérprete (cantor) e dos produtores da música (fonograma) deterem cada um o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras e de suas interpretações e execuções [4].
 
Fundamentado nesse direito patrimonial (comercial) exclusivo [5], interpretar música de outrem (cover), gravar ou executar músicas em rádios, ou plataformas digitais, necessita de autorização prévia de seu titular, podendo ele ser o compositor (autor), ou produtora fonográfica (gravadora ou editora). E, caso exista mais de um titular desses direitos, a autorização deverá partir de ambos, igualmente quando a música é composta em regime de co-autoria[6].
 
Sem a devida autorização, em juridiquês, o titular de direitos poderá suspender e impedir a reprodução ou execução da obra e, ainda, requerer indenização pela violação de seus direitos [7]. Atitudes essas que, justamente, são o motivo de acaloradas discussões no mundo sertanejo [8], funk [9] e pop [10].
 
De fato, nas palavras de Zezé Di Camargo, “YouTube não tem poder para proibir músicas” [11]. Mas os titulares dos direitos autorais musicais, sim, por meio do sistema Content ID.
 
Como em “Trevo” de Tiago Iorc e Ana Vitória  [12], ou Henrique e Juliano interpretando as músicas de Zezé de Camargo e Luciano, os autores, editoras e gravadoras (por cessão ou licença [13]) não autorizam os covers e reproduções por inúmeros motivos, seja porque não chegaram a um acordo sobre a justa remuneração por aquela exploração comercial ou por mera decisão unilateral.
 
Em muitos casos, há também a possibilidade de o intérprete não requisitar a autorização, e, dessa forma, incorrer em reprodução não autorizada.
 
Independentemente da particularidade do caso, é importante destacar que o Google®, assim que adquiriu o Youtube [14], implementou um sistema de verificação de conteúdo: o ContentID [15]. O motivo foram os conflitos com conteúdo experimentados em diversos países, principalmente no Brasil desde 2007.
 
ContentID é um software que realiza uma varredura nos conteúdos publicados pelos usuários na plataforma com inteligência artificial, verificando se contêm ou violam direitos de terceiros [16]. Os conteúdos (obras protegidas por direito autoral) são fornecidos ao YouTube® mediante acordos [17] pelos próprios titulares de direitos autorais, que são identificados e incluídos em uma espécie de banco de dados [18].
 
Pelo sistema, são comparados os milhões de registros do banco de dados com conteúdos disponibilizados na plataforma, sendo capaz de detectar coincidências mínimas, de poucos segundos [19]. Se der “match”, significa que o conteúdo disponibilizado pelo usuário contém obras de terceiros.
 
Uma coisa é certa: todos os conteúdos da plataforma são verificados, inclusive os transmitidos ao vivo (live) [20]. A live é verificada em tempo real, e o dono do canal poderá, se dado o “match”, ser notificado (strike [21]), ter a live suspensa (substituir a transmissão por uma imagem estática), ou “derrubada” (take down) a transmissão [22]. A monetização (obter parte da receita gerada devido aos anúncios relacionados ao vídeo) [23], uma das mais importantes medidas do ContentID, não é aplicável às transmissões ao vivo [24].
 
Um dos grandes benefícios desse sistema foi a desjudicialização de conflitos de direitos autorais, pois, esses conflitos resolvem-se de forma rápida, e até mediada, pela plataforma.
É importante destacar que o controle do uso de obras de direitos autorais nessa plataforma tem outro efeito extremamente positivo. Por meio desse software, foi possível devolver o controle aos seus titulares, ou, ao menos, obter remuneração, muito perdida nos anos 2000 com o uso não autorizado em massa de obras musicais e com o crescimento exponencial [25] da pirataria [26] na internet. 
No que tange o combate à pirataria, o benefício é economicamente expressivo. Com a escolha do titular pela monetização do conteúdo [27], o Google® em seu relatório How Google Fights Piracy 2018 declarou que mais de US$ 3 bilhões foram pagos aos titulares originais dos conteúdos [28]. Após o repasse, somente a indústria fonográfica – a que mais recebe dinheiro por esse meio – embolsou US$ 1,8 bilhão, repassados a gravadoras e artistas entre outubro de 2017 e setembro de 2018 [29].
 
Entretanto, esse compliance estrito do direito autoral parece não agradar gregos e troianos. Ainda que os Criadores (Creators [30]), usuários que criam conteúdo para a plataforma, e Artistas que performam lives possam discordar dos strikes feitos, bem como escolher disputá-los e contestá-los, constantemente criticam o YouTube® pelas penalidades resultantes do ContentID.
 
As críticas não são somente sobre erros humanos. Uma das maiores críticas ao Content ID, tanto no Brasil quanto no resto do mundo [31], são os strikes e as reivindicações incorretas realizados pela plataforma. Seja pelos “falsos positivos” [32] ou pela não inclusão na lista de permissões (comumente chamada “whitelist”), o vídeo poderá ser erroneamente derrubado. Assim, o usuário poderá ser prejudicado, sendo proibido de realizar lives ou ter seu canal suspenso [33], por supostamente, violar direitos autorais.
 
Contudo, uma observação é necessária. Os “falsos positivos” são uma realidade, não apenas do Youtube , mas em todo o mercado de direitos autorais, visto que o fair use (uso razoável [35]) ainda é uma zona cinzenta em nossa legislação [36] para juízes, advogados e agentes do mercado. Dessa forma, se a própria legislação ou doutrina não estabelece parâmetros categóricos, há uma insegurança jurídica no que seria um “uso razoável”.
 
Ainda que seja um sistema automatizado, o ContentID é afetado [37]. Se houvesse uma definição exata para quais são os limites de uso de boa-fé e ausência de violação de direitos autorais, o Content ID, com seu constante aprimoramento e avanço da inteligência artificial, seria capaz de se adequar a essa nova regra. Todavia, enquanto não há essa definição, há o ônus de, eventualmente, vídeos serem, de forma indevida, derrubados.
 
Na medida em que existem mecanismos e fundamentos para a defesa dos detentores originais de direito e dos usuários da plataforma, a alegação de que há “censura” é um tanto quanto extrema. Há, todavia, um sistema para controle e gerência dos direitos autorais, que, positivamente, garantiu que o YouTube fosse visto com maior confiança pelo setor musical.
Por óbvio, se constata que os avanços trazidos pela implementação do Content ID são inúmeros, não só por proteger a própria plataforma, mas por proteger os titulares de diretos autorais, principalmente em conteúdos ao vivo (live). Se dosados os prós e contras do sistema, fica claro que existem mais benefícios do que malefícios.
É uma questão de tempo para que os avanços da legislação causem impactos positivos nas ferramentas tecnológicas, nos trazendo ainda mais benefícios.
 
*As informações constantes nas Políticas do Google, bem como as menções às mesmas, datam de 01 de julho de 2020.
 
[12] https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/14/tiago-iorc-responde-anavitoria-por-novo-desabafo-questao-nao-e-com-voces.htm
[13] Art. 49, LDA nº 9.610/98.
[14] http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,AA1304481-6174,00.html
[15] https://googleblog.blogspot.com/2007/10/latest-content-id-tool-for-youtube.html
[16] https://support.google.com/youtube/answer/6070344
[17] https://support.google.com/youtube/answer/1311402?hl=pt-BR
[18] https://support.google.com/youtube/answer/2797370?hl=pt-BR
[19] http://www.ubc.org.br/Publicacoes/Noticias/15302
[20] https://support.google.com/youtube/answer/3367684?hl=pt-BR
[21] https://www.tecmundo.com.br/internet/138861-olha-strike-youtube-lanca-novas-regras-sistema-punicao.htm
[22] https://support.google.com/youtube/answer/6070344
[23] https://support.google.com/youtube/answer/2797454?hl=pt-BR&visit_id=637287878493665016-3906936639&rd=1
[24] https://support.google.com/youtube/answer/9896248?hl=pt-BR
[25] https://www.tecmundo.com.br/internet/138616-pirataria-volta-crescer-aumento-conteudo-exclusivo-streaming.htm e https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/governo-novas-regras-combater-pirataria-internet/
[26] Art. 184, CP (Decreto Lei 2.848/40)
[27] How Google Fights Piracy 2018 (https://www.blog.google/documents/27/How_Google_Fights_Piracy_2018.pdf)
[28] https://canaltech.com.br/pirataria/youtube-ja-pagou-us-3-bilhoes-por-meio-do-contentid-126433/
[29] https://canaltech.com.br/pirataria/youtube-ja-pagou-us-3-bilhoes-por-meio-do-contentid-126433/
[30] https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/advertising-channels/v%C3%ADdeo/creators-connect-o-poder-dos-youtubers/
[31] https://www.eff.org/deeplinks/2010/03/youtubes-content-id-c-ensorship-problem
[32] https://support.google.com/youtube/answer/6396261?hl=pt-BR
[33] https://support.google.com/youtube/thread/940258?hl=pt-BR
[34] https://support.google.com/youtube/answer/6396261?hl=pt-BR
[35] Art. 46 LDA c/c STJ -Resp 12175667 SP 2020/0185114-4, Relator Ministro Luiz Felipe Salomão, Data de julgamento: 07/05/2015 – Quarta turma
[36] Art. 46 LDA
[37] https://brooklynworks.brooklaw.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1501&context=blr
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